Fazia um tempo que eu pretendia começar a assistir k-dramas (séries coreanas), mas ficava apenas adicionando títulos na minha lista sem conseguir me decidir por qual começar. Quando fiquei sabendo sobre Extraordinary Attorney Woo soube que deveria começar com essa. Séries com protagonistas neurodivergentes sempre me chamaram a atenção, mais ainda depois de ter tido o meu diagnóstico tardio de TEA + AH (Transtorno do Espectro Autista + Altas Habilidades/Superdotação) no ano passado, porém nunca havia visto uma produção com uma protagonista mulher adulta e autista ganhando tanta repercussão e popularidade, isso me deixou muito feliz e interessada.
[A partir daqui pode conter spoilers]
Já adianto que amei a série e pretendo destacar nesse texto muitas coisas que me alegraram nela, porém acho importante frisar alguns pontos antes.
Primeiro, dramas coreanos são conhecidos por serem dramáticos (no sentido de dramatizar situações), então algumas ações e características podem parecer exageradas, isso deve ser levado em consideração ao assistir uma produção assim.
Segundo, é importantíssimo saber que a personagem não é apenas autista, ela é um caso de dupla excepcionalidade, pois possui duas neurodivergências, o autismo e a superdotação. Então não devemos perpetuar o estereótipo de que todo autista será um gênio, quando na realidade o espectro é composto por pessoas diversas e possuir uma inteligência acima da média não é uma regra. Outro ponto que me incomodou um pouquinho foi o fato de a personagem apresentar muitas características e estereotipias do TEA ao mesmo tempo, mas acredito que tenha sido para enfatizar esse fato e para fazer jus a dramatização e exagero da série.
Agora, não ignorando esses e outros pontos que estão sendo criticados e reconhecendo que existem sim problemas, mas que esse não é o foco do meu texto, preciso dizer que é uma série necessária, encantadora e sensível. É leve, traz temas importantes e pode servir como um respiro no mundo caótico e disfuncional em que estamos.
É a primeira vez que vejo uma série abordar sobre Hans Asperger e sua ligação com o nazismo,isso foi muito relevante, pois muitas pessoas não fazem ideia disso. Gosto como abordam o fato de existirem níveis de suporte diferentes dentro do espectro (e não graus de autismo, já que esse termo não é mais utilizado) e para além dos níveis de suporte como cada autista tem seu autismo, suas peculiaridades, prejuízos, habilidades e características. É muito legal ver uma mulher adulta autista tendo amigos, opiniões próprias, se relacionando romanticamente e querendo ser independente (mesmo ficando claro a necessidade de suporte dela para isso). A forma como os demais personagens dão autonomia para a Young-woo ao mesmo tempo em que dão suporte é preciosa.
A série também aborda o capacitismo, seja sutil ou explícito, que ela sofre no dia a dia, no trabalho e até na rua. O fato dela não conseguir uma vaga de emprego mesmo tendo notas impecáveis mostra como o capacitismo afeta o dia a dia do autista. O índice de desemprego de pessoas no espectro é altíssimo e muitos autistas não conseguem se encaixar no mercado de trabalho pela falta de suporte e adaptações das empresas, pela padronização do que é ser funcional, do que é se comunicar bem e do que é ser útil.
Uma coisa que sempre me chama a atenção em séries com protagonistas autistas, e que me chamou nessa também, é a questão da comunicação. O autista se comunica de maneira diferente e está tudo bem. A cobrança para que a gente se comunique como os neurotípicos não faz sentido e não é porque a comunicação é diferente que ela é errada. Quando se presta atenção, os neurodivergentes podem possuir muitas características da comunicação verdadeira, como honestidade, intenção, objetividade, autenticidade, entre outras. Independentemente de ser com um autista ou não, é importante não criarmos um padrão para a comunicação. Antes de dizermos que alguém não faz ou sente algo, temos que observar os detalhes e ver se essa pessoa não demonstra isso de uma forma diferente da nossa.
Essa série é um convite para quebrarmos as expectativas e ideias fixas sobre o que é uma comunicação efetiva e o que é um jeito correto de ser e agir. É um chamado para reconhecermos a autenticidade, para ser quem se é e deixar que o outro seja o que ele é também.
Por fim, vale sempre a pena lembrar que autista não tem cara e que o autismo é muito mais do que muitos julgam ser. Com um olhar raso, sem empatia e amor, jamais será possível conhecer a profundeza de um autista (e de um não autista também).
No raso não existem explicações, sentido nem conhecimento sobre o autismo de cada autista, seus sentimentos, vivências, lutas diárias e capacidade. Não é possível mergulhar estando coberto com julgamentos, preconceitos e estereótipos. Apenas se livrando disso e com disposição para ir ao fundo é que se torna possível descobrir, compreender, aceitar, admirar e amar as preciosidades escondidas no fundo de cada alma.
Finalizo com uma frase que gosto muito de Temple Grandin, mulher autista, psicóloga e zootecnista: “Eu sou diferente, não menos.”